arquivar as estruturas

Arquivar as estruturas é um gesto de registro, é uma forma de captar o seu próprio atravessamento dentro de um espaço, e, a partir deste, tentar entender as relações que são construídas entre o indivíduo e o ambiente que o cerca, os espaços da cidade por onde ele passa, tentar perceber tanto a estrutura física quanto a estrutura social na qual estamos inseridos quando no espaço urbano. A construção de um arquivo é assim também a construção imagética de uma percepção das estruturas presentes a nossa volta a partir do que é coletado, arquivado, das fotos, vídeos, textos, objetos, caminhos, trajetos, todos esses vislumbres de uma realidade momentânea, capturando assim os instantes fugazes que nos cercam.
Arquivar é suposto ser um gesto demorado, não pode ser feito de um momento pro outro, seu valor é construído pela repetição e pela sobreposição, são camadas de significados. Assim como o urbano é denso em suas possibilidades, também o arquivo deve ser. A solidez de um registro contrapõe a efemeridade do que é registrado, a imagem dura mais do que a memória, ainda mais quando esta é curta. É um gesto que é tanto artístico quanto é de sobrevivência, ele é feito a partir da vida, do acúmulo das experiências, que se basta em si mesmo, é a história de um momento.
O arquivo pode então ser visto como um tipo de mapa, uma cartografia, conjunto de signos e de coordenadas simbólicas que sinalizam uma forma de se relacionar com o espaço a partir de uma perspectiva própria. O arquivo é uma ferramenta para sobreviver à crise.
Em um momento atípico como o que vivemos agora, ele se torna ainda mais interessante, quando as estruturas à que estamos acostumados estão suspensas em prol de uma política do distanciamento tanto do espaço público quanto das outras pessoas. Ele se torna um mapa pra um lugar que já não existe - e que possivelmente não vai voltar a existir - um mapa para um mundo já imaginário, intangível, de um tempo tão próximo mas também que parece tão distante. Quando a experiência que temos do urbano não é mais a mesma, que novas relações se criam ao olhar o arquivo? O arquivo se torna uma maneira de voltar a se experienciar a cidade, não como era antes nem como ela é agora, mas uma nova maneira, acompanhando as tendências digitais de conexão que estão sendo impostas durante a crise.
A mudança não é o fim do arquivo, nem do gesto que o gera, mas é a oportunidade de olhar tudo aquilo que foi guardado quando nos preparávamos para os dias de necessidade.

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Fazem dois anos desde que me decidi a focar em registrar/arquivar estruturas - estruturas reais, como andaimes, construções e até ruínas - porque vi nesses elementos a cidade mutável, que está sempre em um constante estado de transformação, quase que viva. De lá pra cá, já foram milhares de registros - das mais diversas categorias -, tantos que a singularidade de cada um lentamente se perde dentro de uma imagem do todo, da estrutura, registros sólidos de algo que é totalmente efêmero, criando uma cidade imaginária - ou não - que é feita totalmente de momentos passageiros. Olhar esse arquivo hoje é saber que esses momentos de transformação já passaram, se esgotaram, e que aquela cidade já não existe, mas também é, ao mesmo tempo, se propor a visualizar a possibilidade de uma nova cidade, um novo urbano.

Texto escrito em 2020, publicado no livro Gestos artísticos em tempo de crise, organizado pelo grupo Urbanidades e editado pela editora Duna. Disponível em: https://www.redezero.org/gestos.pdf
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Na atualidade, com o avanço das tecnologias de comunicação e a expansão do uso da internet e suas plataformas, o ato de arquivar começa a ficar cada vez mais acessível, o papel do arquivista não é mais tão distinto do usuário, como fala Giannachi (2016, p. 13), o usuário-arquivista vai gerando novos materiais ao mesmo tempo em que consome o que encontra nos arquivos. É a partir dessa acessibilização da prática arquivística que artistas começam a criar os seus próprios arquivos, subvertendo o seu território e a sua linguagem, buscando registrar outras narrativas e deslocar os centros.
Dentro da prática artística - e dentro da perspectiva dessa pesquisa - o arquivo pode ser visto como uma forma de se guardar memórias, proteger momentos do esquecimento, estabilizar os materiais, mas nesse processo se corre o risco de criar o contrário, de jogar esse arquivo no esquecimento, perdido. O arquivo pode, ao mesmo tempo, ou matar a potência dos objetos arquivados, ou consagrá-los, criando o que Derrida chamou de “mal do arquivo”.
Qualquer material que for arquivado corre então o risco de ser esquecido e eventualmente desaparecer. Como então fazer um arquivo de paisagens-memória, fantasmas dos caminhos e das paisagens, como tentar salvar os momentos efêmeros das construções e das ruínas, se mesmo dentro do arquivo o risco do esquecimento está sempre presente? O artista Jayce Salloum coloca que “acumular um arquivo é um ato de fé, não na preservação, mas na crença que haverá alguém para usá-lo, que o acúmulo dessas histórias continuará a viver, que elas terão ouvintes.” (SALLOUM, 2006, p. 186 apud FITZPATRICK, 2013, p. 3).
Sue Breakell levanta um conceito da arquivologia chamado archive continuum. No ciclo de vida convencional de um arquivo, primeiro um registro é feito para documentar uma atividade que está acontecendo e quando não tem mais uso é ou destruído ou arquivado, ficando guardado para sustentar as posições de quem criou o arquivo. Quando se pensa no archive continuum esse ciclo não se aplica mais. Segundo esse conceito, o arquivo não vai da circulação para o arquivo; na realidade, o arquivo entra e sai constantemente de circulação, tendo desde sua criação qualidades tanto atuais quanto históricas. A partir dessa perspectiva, o arquivo sempre tem a possibilidade de ser atual, de poder ser ressignificado e lido de novas maneiras a partir do novo contexto em que ele se coloca.
O que eu me propus a fazer foi a organização de um arquivo das paisagens-memória das construções e ruínas, tentar colocar alguma ordem nos materiais que tinham sido coletados até então, criando um arquivo sempre expansível que, como deve ser, não se propõe a ser um registro de uma totalidade, mas sim um arquivo parcial, sempre incompleto, e sempre aberto a novas significações. Esse arquivo se coloca nesse momento como um site, construído em conjunto com a escrita deste trabalho, que relaciona tanto os trabalhos feitos quanto os textos escritos e os materiais coletados nos últimos anos.
A proposta da criação do site também surgiu por uma necessidade do arquivo, que é a estruturação de algum tipo de ordem que permita que ele seja acessível aos observadores. FitzPatrick menciona uma conversa com Nayia Yiakoumaki, arquivista e curadora, que afirma que para se construir um arquivo é preciso uma organização e estrutura particular, “é possível coletar sem saber por que o faz. É possível coletar sem dar uma estrutura à coleção, mas não se pode arquivar sem fornecer um motivo e um foco” (FITZPATRICK, 2013, p. 10). Dessa maneira, um site funcionaria como uma plataforma organizada para todas as produções que forem surgindo a partir da pesquisa.
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Trecho do trabalho de conclusão de curso que gerou esse site.
“[...] muita arte arquivística parece se ramificar como uma erva daninha [...]”
“[...] qualquer arquivo é fundado em desastre (ou sua ameaça), empenhado contra uma ruína que ele não pode evitar.”
Hal Foster (2004, p. 5).
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